De fora, a cena até é acolhedora.
Lusco-fusco. A persiana entreaberta,
revela uma janela que mantem um vestígio de condensação, tentando a todo o
custo impedir o frio de entrar. Pela cama, mantas espalhadas com mestria. No
canto do quarto, em cima da mesa de cabeceira, um candeeiro de luz quente.
De fora, olhando para a ampulheta
decorativa, ao lado do candeeiro, parece pacifico até. Mal se sabe. Quem olha,
não se apercebe – ansiedades desarrumadas pelo chão, interpoladas por medos e
desilusões.
Quatro frágeis paredes que, ocasionalmente,
presenciam as minhas vãs tentativas de esquecer tudo isto. Como que transpor um
vírus para outro corpo. Como que infetar, tingir ou manchar outra pele que não
a minha.
Acabo por conseguir, nem que
momentaneamente. Mais destruídas que eu, despedem-se com um sorriso nos lábios de
quem não compreende que albergou um beijo envenenado.
Tão frágeis como eu, tão irremediáveis
quanto eu.
Todavia, quando visto de fora, tudo
parece perfeito. O meu quarto, numa impostora luz que finge ser romântica; a
minha cama por fazer, com lençóis arrepanhados para trás, puxados à pressa; a
respiração ofegante de quem transpirou para cima de outra pessoa.
Digno de filme, até quando há
filme.
Ontem, enquanto me afastava do
quarto para fechar a porta de casa, permitindo-me ficar no silêncio que imploro
e abomino ao mesmo tempo, percebi que devia deixar de escapar por entre as
pernas de seres tão quebradiços quanto eu. Por mais que despeje, nunca
conseguirei despejar a dor que sinto para dentro delas – por muito que tão bem
me saiba.
É triste. Mas pelo menos, de fora,
é tudo tão perfeitamente delineado.
Encosto os meus lábios aos lábios
dela. Digo-lhe para me dizer algo quando chegar a casa. Vejo o sorriso dela e
retribuo-o. Fecho a porta.
Fim de cena.
A persiana parte-se. A janela deixa
entrar o frio. Não há mantas na cama. O candeeiro apaga-se. E eu estou sozinho.
Outra vez.
Afinal vivi tanto pelos outros que me esqueci de sentir.
E só agora me dou conta de que tudo o que sinto, não me quer deixar sentir.