domingo, 2 de abril de 2023

ipo

(Demorei 3 dias a escrever as palavras que se seguem. Cada frase foi puxada a ferro, numa qualquer tentativa de autoterapia. Ainda não sei se funcionou. Não sei se algum dia saberei.)

19h59m.

De telemóvel na mão, marquei o número e aguardei.

Naquele momento, naquele quarto de hotel, enquanto estava sentado na cama por fazer, senti medo pela primeira vez. Até então, a anteceder aquele momento, tinha-me ocupado por ruas por explorar, fugindo de um qualquer fugaz pensamento que me fizesse sucumbir a mim próprio e escapando por entre esquinas ensolaradas, livres de sombras.

Mas, enquanto ouvia o sinal da chamada, não existia mais sol e o quarto tinha escurecido drasticamente: E se correu mal? E se esta é a chamada que muda a minha vida? E se é hoje que deixo de viver? E se…?

Ouço uma voz, do outro lado da linha.

Entre “Seria possível passar-me à extensão X” e “Estou a contactar em nome da paciente Y”, fui percorrendo vozes em piloto automático, até chegar à que me tranquilizou com um simples “Correu tudo bem.”.

Apesar de todo o turbilhão de questões que tinha por fazer, respirei fundo. Enquanto o tempo avançava, senti-o parar momentaneamente. Toda a antecipação, todo o receio, dissiparam. Aquela etapa estava concluída. Mas essa pequena vitória foi ofuscada. Rapidamente quis saber mais detalhes que não me conseguiam dar. Senti, novamente, o nó na garganta. Empurrei o choro para dentro e quando, após questões triviais, me disseram que te podia visitar, levantei-me com uma velocidade tal que me fez ficar tonto.

O hospital era já ali. Tu estavas já ali. E eu estava a ir.

Percorri o caminho, apressado, sem ver bem por onde ia, dando um passo atrás do outro. Sem saber muito bem como, cheguei ao edifício. Entrei pela porta principal, comuniquei ao segurança qual a extensão ligar para confirmar a minha visita e, após a confirmação, virei à direita para o elevador.

O quinto piso demorou a alcançar. O velho elevador, cheio de tremeliques e com botões em falta, ameaçou não chegar ao seu destino – algo que, provavelmente, também tinha feito nas outras vezes que o usei mas só agora tinha reparado. Finalmente, ao chegar ao meu destino, a porta abriu.

O silêncio dominava naquele corredor escuro que se encontrava à minha esquerda. Não havia nada nem ninguém. A porta que me permitia entrar para o internamento estava fechada. Confuso, sem saber para onde me dirigir, tentei, em vão, bater à porta ou chamar alguém. Eis que, por sorte, uma enfermeira saiu da casa de banho e, de forma desconfiada, me deixou entrar. “Vá até ao fundo do corredor e vire à esquerda.”, disse ela, de sorriso nos lábios. Assim o fiz. Estava quase, pensei. Estou quase perto de ti. No fim do corredor, virei à esquerda e entrei na sala de recuperação.

Boa noite, vim ver a senhora Ana Paula Santos.”, informei. A enfermeira, sentada na mesa ao fundo da sala, apontou para a última cama do lado direito e, enquanto eu me dirigia a ti, disse, alegremente “Dona Ana Paula, veja lá quem está aqui. Não vale é chorar.”.

Nada me preparou. Nada. O corpo que estava naquela cama, recolhido sobre si mesmo, submerso em dor, olhando-me com o olhar mais desesperante que alguma vez vi, fez-me querer morrer.

Todos os tubos que saiam de dentro de ti, esses, pouco me faziam mossa – era para isso que me tinha preparado – mas, quando percebi que estavas num sofrimento tal que mal conseguias olhar para mim, o meu coração parou, momentaneamente, de bater.

De máscara na cara, sorri, contrariando as lágrimas que queriam jorrar pela minha cara abaixo. Agarrei na tua mão e perguntei-te se tinhas dores. Suspiraste fundo, muito fundo, e abanaste a cabeça, confirmando o meu maior medo. Disse-te que me tinham dito que tinha corrido tudo bem, que a dor era normal e que estavam a dar medicação para que tudo ficasse melhor. Fizeste-me sinal para te tirar uma fotografia. Querias ver o teu pescoço. Pensei em dizer-te que seria melhor não mas, conhecendo-te, sabia que irias ficar ainda mais preocupada, então assenti. Quando te mostrei a fotografia, apertaste-me a mão, ao qual eu reagi com um “Tem bom aspecto, não te preocupes.”.

Ao teu lado, o monitor de sinais vitais apitou. Afastei-me e olhei para a enfermeira que me assegurou que estava tudo bem, que era normal. Voltei a ti e deixei-me ficar mais um pouco, de sorriso nos lábios, fazendo movimentos circulares com o polegar na tua mão. Quando me despedi de ti, apontaste para a cara. “Queres um beijinho, é?”, perguntei eu, aproximando-me e pressionando os lábios na máscara que tocou na tua face. Tranquilizei-te. “Amanhã já estou aqui, ok? E quando conseguires, diz-me alguma coisa, está bem?”, Disse-te antes de te largar a mão e sair pela porta.

Entre chamadas aos familiares, aquietando-os, de forma ligeira, dizendo que tudo tinha corrido bem, fiz o trajecto de volta ao hotel, contendo toda a dor que tinha dentro de mim. Sentia-a a pulsar dentro de mim. A querer rasgar-me a pele e brotar como um tsunami. Mas aguentei. Aguentei, isto é, até fechar a porta do quarto e terminar a última chamada.

Então chorei e chorei muito. A respiração custava a chegar. Os olhos ardiam-me. O meu corpo tremia. Sentia-me sozinho. Aquele peso era só meu. Não podia contar a ninguém. E não havia nada que eu pudesse fazer por ti, pela tua dor.

Desde então, têm-me dito “Tens sido muito forte.”, “Eu não sei como tu tens aguentado.”, “Eu não estaria tão bem como tu.”. Oh, quão pouco sabem sobre mim e o que tenho sentido.

Não tenho estado bem. Tenho tido medo. Tenho chorado muitas vezes. E, entre tudo isto, tenho sido o que consigo, por ti. Sem que notes que estou a desabar. Sem que saibas que todas as noites fico acordado, num sono febril, sufocado de preocupação.

Tento focar-me nas boas notícias. Tens recuperado bem, melhor do que previsto, e se tudo correr bem, para a semana estás em casa. Em casa, junto de mim. Mas, apesar das boas noticias, estou demasiado exausto para ser positivo. Este turbilhão na minha vida virou tudo de cabeça para baixo. Uso toda a força que tenho para ser positivo nas nossas conversas, para sorrir diariamente nas nossas vídeo chamadas, para te dizer que tudo vai correr bem e que vais ultrapassar tudo isto.

Mas não sei se isso é verdade.

Não sei o que nos dirão daqui a três semanas, quando nos chamarem para a consulta de decisão clínica. Sinto novamente o medo percorrer-me o corpo e eriçar-me os pelos da nuca. A ideia de reviver o momento em que, num consultório, um médico desconhecido, nos diz uma das piores coisas que se pode ouvir, é-me inconcebível.

Estou paralisado de medo. Mas não podes saber disso. Não podes ver. O meu corpo manifesta-se, eu não. Isolo-me, fica mais fácil.

Foco-me em ti, apenas em ti. E, a custo, uso a pouca força que ainda me resta, para pensar:

Vais ficar bem. Vamos ficar bem.”.